Corte de Cabelo

Quando era muito novo, e vivia ainda em Lisboa, num modesto apartamento, acompanhado pelos meus pais e a minha irmã mais velha, apercebi-me que o mundo estava cheio de mulheres dominadoras sequiosas de poder.

Não passava um dia em que a minha irmã e a sua amiguinha não me obrigassem a comer as suas sopas de caldo-verde, com pedaços da melhor relva e regada com a melhor lama. Uma visão pavorosa.

Mas isto não é nada. Contra minha vontade, e que isto fique bem acente, por várias vezes me vestiam com as roupas da bonecas e me passeavam no carrinho da ditas.

Numa certa tarde em que me confiaram às garras da desvairada da minha irmã, ela tratou de me usar para experiementar a sua vocação cabeleireira de 4 anos, inovando com o meu parco cabelo num corte digno dos maiores defensores do cubismo hermético.

A dominação estava sempre presente.

A minha mãe obrigava-me a comer ou a ir deitar-me às 9:30 sem sequer poder ver a sessão da noite na televisão. A mim! Um jovem de 3 anos.

O mundo está cheio de injustiças.

E a gata lá de casa que o diga, pois quando não era o menino a puxar-lhe o rabo, era a menina. Isto para não falar que no dia do corte cubista, em que a gata teve direito a ficar sem bigodes.

As prendas do menino!

Um homem vem ao mundo e vai-se embora exactamente da mesma maneira:

– Gosta de maminhas, faz birra para comer e borra-se nas calças.

Quando nascemos é mais nas fraldas, mas qualquer pai que se preze gosta de ver a primeira prenda que o menino faz.

Abre-se a fralda e… Ena! Caquinha rala!

Acredito que não tenham sido os meus pais os primeiros a mudar-me a fralda, mas que a mudaram muitas vezes…

Aliás, tantas vezes que ao fim de uns tempos o pai babado diz:

– Porra, pá. O miudo deve estar podre.

Mas isto de fraldas é mais para as mulheres, que gostaram tanto delas que decidiram continuar a usá-las, mas numa versão menor, uma vez por mês.

Têm a minha solidariedade.

11 de Janeiro de 1970. Nasci!

Pode não parecer nada de importante, mas imagino que estava cansadíssimo quando nasci.

Nem imagino o estado em que a minha mãe ficou.

Nasci em Lisboa numa clínica privada, mas para grande desgosto meu, não me lembro das mordomias, nem do nome, pelo que não posso aconselhá-la a ninguém.

Também não me lembro de quando disse as primeiras palavras, mas imagino que deva ter-me babado ao mesmo tempo, o que na altura constituía uma grande habilidade, ficando sem saber se era aplaudido pelo balbuciar se pelo hidro-espéctaculo.

Vivi algum tempo por casa dos meus avós, pelo que me disseram, mas desde que me lembro, vivemos em Santo António dos Cavaleiros, nos arredores da capital.

Natal dos hospitais

O Natal é a quadra mais celebrada pela minha família. Não porque sejamos muito religiosos, que não somos. Fui baptizado e fiz a primeira comunhão, mas o padre depois de me dar a bolacha nunca mais me viu que aquilo sabia a bafio.

Na verdade somos ligados a um consumismozinho matreiro que alimentámos desde pequenos assistindo aos crescidos a jantar longas horas de bacalhau e azeite enquanto em prantos gritávamos em coro “”As prendas. As prendas.””

Nada que não tenha deixado mossa. E porque de mossa, a minha há-de ser num daqueles sítios que só os outros vêem, mas a dos meus irmãos é bem à vista do condutor, de preferência no capota.

Bateram ambos de frente na desorganização natalícia da família e recusam-se a compactuar com tal coisa, numa atitude de “”Quem não é por mim, é contra mim.”” e eu a habilitar-me a ficar sem prendas, pois que as deles, por mais insignificantes que fossem economicamente, eram as que sempre me tocavam mais.

Nada como uma boa confusão armada pela matriarca, para que os irmãos se deixem de falar. Não que eles tenham alguma razão para se chatearem comigo, mas a verdade é que dá mais trabalho chatearem-se com quem os pariu mas eles não escolheram.

A minha percepção é que chego a esta altura sempre com a alma hospitalizada. Seja com quem for, a culpa passa para mim, vá se lá saber porquê.

E lá fico à espera que passe a quadra da prendas para voltar à calmaria do meu lar. A vida é cheia destas coisas menores, mas na verdade é grande como mais nada.

Não sei se por as abarcar, se por ter um sentido sem sentido mas que não deixa de ser. E é com este pensamento da profundidade de uma poça de chuva que vos deixo, para um Feliz Natal e Feliz Ano Novo.

Feliz aniversário

No passado dia 11 celebrou-se mais um ano da minha vida.

Não sou nenhuma senhora, mas por favor poupem-me a divulgar a minha idade.

Não porque não goste de ter 31 anos, mas porque na realidade se trataram de 31 vezes que tive de celebrar algo que nunca gostei muito. Não vejo grande diferença entre o meu aniversário dos 11 anos e este.

Nesse ano, e talvez por pirraça infantil, fiz questão de dar 11 erros no ditado da classe, recebendo a respectiva admoestação da professora que encontrava habitualmente apenas 1 a 2 erros.

O caso é que desde pequeno é mais uma obrigação para mim ter de receber os meus amigos e conhecidos que outra coisa.

E se na altura me angustiava e só conhecia algumas pessoas, imaginem o estado angustiante em que me encontro agora a cada aniversário.

Na realidade, e nesse ano, para minha desgraça lá tive de receber todos os que queria realmente e aqueles que se não convidasse poderiam não achar por bem uma vez que me haviam convidado a mim para as festas deles, às quais acabava sempre por ir pois me era dito que não se devia de fazer a desfeita.

E no meio desta pescadinha de rabo na boca acabava sempre por aparcer mais alguém, em acompanhamento de um outro que por acaso tinha acabado na lista de convidados por ser vizinho ou filho de algum amigo dos meus pais.

O que me angustiava mais era saber que todas estas crianças iriam ter acesso aos meus preciosos brinquedos.

Não era que eu não tivesse por hábito convidar os meus amigos para brincar. Mas esses eram escolhidos a dedo enquanto se comportavam conveninentemente, entenda-se não partiam nada, e corridos a pontapé logo que o fizessem.

Na realidade tive a sorte de reunir junto a mim um grupo de amigos, daqueles de que se costuma dizer que foram poucos mas bons, os quais sempre souberam estar à altura dos planos elaborados que elaborávamos em conjunto para os muitos legos de que era proprietário.

O problema eram os amigos do meu querido, e por quem sempre nutri um amor cuidadoso, irmão.

Esse sim era um terror, e fazia questão de destruir fosse o que fosse que se colocasse ao seu dispor. Infelizmente estes sentimentos violentos foram fomentados por mim e pela minha querida irmã, conspiradora de causas comuns no que tocava a segregar o ervilha, que por diferenciar de mim 4 anos, não dispunha, na nossa opinião, das mesmas capacidades que nós para participar nas nossas intricadas novelas domésticas com que nos deleitávamos nos fins de tarde após as aulas.

Por isso tudo, desculpa irmãozinho, mas tu vingaste-te sempre que pudeste, mas isso fica para outra história.