À política o que é da política

Em 2017, soube-se por um acórdão que um tribunal decidiu tecer juízos morais sobre a vítima de um crime de agressão.

Nesse acórdão, o Tribunal da Relação do Porto, através do juiz relator, num ato oficial de um órgão de soberania, entendeu que lhe cabia explicar no âmbito de uma análise jurídica que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”; como a agressão não teria sido o pior resultado de um adultério, invocando culturas “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”; que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”; que o Código Penal de 1886 “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”; e ainda que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso [a sociedade] vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” [1].

A associação Capazes, “promotora de uma ocupação igualitária das mulheres no espaço público”, entendeu que as considerações morais tecidas no acórdão são inaceitáveis.

Uma autora desta associação considerou os argumentos apresentados como machistas e que não é aceitável que um juiz fale por todos nós de castigos físicos e mortais para defesa da honra; que a liberdade sexual tenha um valor distinto entre homem e mulher; e ainda, que o exercício da liberdade sexual possa ser visto como pretexto para a violência e homicídio [2].

Esta e outras associações promoveram uma petição pública com propostas de melhoria do nosso sistema judicial que endereçavam as razões que fizeram deste acórdão notícia. Pediam ainda que a decisão em causa fosse sindicada. A petição foi assinada 28585 vezes [3].

As propostas de melhoria apresentadas na petição eram endereçadas principalmente ao Conselho Superior de Magistratura, mas também à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério da Justiça, ao Centro de Estudos Judiciários e à Comissão para a Igualdade de Género. Das propostas da petição faziam parte o pedido ao Conselho Superior de Magistratura para “promover a publicação de todas decisões (decisões sumárias e acórdãos) dos Tribunais Superiores (Relações e Supremo Tribunal) transitadas em julgado”; que fossem determinados momentos formativos dos magistrados com uma maior dimensão interdisciplinar com participação de formadores de outras áreas; e que estes momentos incluíssem a formação para a igualdade de género [3].

O Conselho Superior de Magistratura decidiu, em 2019, sancionar o juiz relator com uma advertência por este e outro acórdão com afirmações de teor semelhante.

Segundo um comunicado do Conselho Superior da Magistratura, a sanção é aplicada ao juiz relator pela “prática de uma infração disciplinar por dever de correção”, mas deixa de fora a juíza coautora “por se ter entendido que não era exigível demarcar-se formalmente de expressões que não integravam o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade exclusiva e pessoal do autor” [4,5].

Concordo com a autora das Capazes. Concordo com as propostas da petição, que assinei e ajudei a promover. A igualdade, a transparência e a separação de poderes têm de ser militantemente defendidas e afirmadas numa democracia.

Não poderia discordar mais da segunda parte da decisão do CSM. Em causa não estão as decisões destes magistrados como cidadãos independentes ou o seu direito à opinião. Em causa estão os atos e omissões destes em nome de todos nós. Em causa estão o exercício de funções do Estado num órgão essencial à democracia.

Cabe às associações livres da sociedade civil, como as subscritoras desta petição, pressionar os decisores na defesa de interesse geral ou de causa. Mas é dever dos partidos políticos defenderem publicamente e de forma intransigente os valores que estão na base do nosso sistema democrático.

A um tribunal, por ser um órgão de soberania não eleito pelo voto popular, não lhe cabe, de forma alguma, apresentar a sua visão sobre a sociedade ou servir de “arauto de um certo Portugal” [6]. Os seus acórdãos não podem ser transformados em panfleto de fação, sobe pena de se perder a separação de funções, e, consequentemente, a de poderes.

Os tribunais, e os juízes no exercício de funções, não podem ser confundidos com atores políticos.

Bem sei que tudo isto ainda é mais aberrante pelo conteúdo das “opiniões” do juiz relator, mas se vezes sem conta se ouvem políticos a deixar aos tribunais os casos em tribunal, é altura de os políticos repetirem mais uma vez “à política o que é da política”.


Referências:

  1. Observador, “Leia aqui o acórdão do juiz que atenuou agressão por causa de adultério”
  2. Inês Ferreira Leite, site Capazes.pt, “Um acórdão lapidar”
  3. Petição Pública, “Essa Mulher Somos Nós”
  4. SIC Notícias, “Juiz Neto de Moura recebe advertência”
  5. Conselho Superior de Magistratura, “Nota à Comunicação Social“
  6. Artur Costa, Blog Sine Die, “Respondendo a Maia da Costa”

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 18 de fevereiro de 2019)

Pode uma ordem profissional confundir-se com um sindicato?

A resposta é não.

Uma ordem profissional não pode defender interesses de classe, até porque “[a]penas podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, estando expressamente afastado o exercício de funções próprias das associações sindicais.” [1].

Uma ordem não é um sindicato, nem pode ser porque não é uma associação de adesão livre. É uma organização que, por delegação do legislador, regula e fiscaliza a atividade dos profissionais que executam a profissão que controlam.

Não seria lógico entregar uma função de controlo de qualidade a quem tem de fazer a defesa de um interesse que é constrangido por essa qualidade.

Nitidamente, uma associação que tivesse o poder regulatório e fiscalizador de uma profissão, e ao mesmo tempo a pressão para obter resultados negociais, estaria num constante dilema entre a defesa dos interesses dos associados e a defesa do interesse público.

Mas esta mistura não aconteceu, nem pode acontecer. Isso seria impor uma classe profissional que para exercer essa profissão tinham de aderir a uma associação de defesa de interesses, sem escolha, sem opção por outra com a sua visão política.

Existem hoje múltiplos sindicatos para cada profissão, empresa, o que reduz a capacidade de um só sindicato controlar toda a atividade de um setor, mas só existe uma ordem por profissão.

No confronto entre a vontade de dar as condições à defesa de um grupo e o direito de todos os outros membros de um grupo em não concordar com a forma reivindicativa, a vontade política tem separado as funções e poderes. Isto retira aos sindicatos a possibilidade de negarem o direito ao trabalho e às ordens de manterem reféns ideológicos aqueles profissionais que não concordem com a sua visão.

“As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”[2]

“Os sindicatos, como associações de direito privado, são de criação e de inscrição voluntária e que não dispõem de poderes de autoridade pública (salvo casos excecionais de delegação)” [3].

“De resto, se as ordens pudessem envolver-se na defesa de reivindicações laborais (carreiras, remunerações, etc.) junto com os sindicatos, as profissões “ordenadas” gozariam de um privilégio de que as demais profissões não dispõem, ou seja, um “supersindicato” com inscrição e quotização universal e obrigatória.”[4]

Imaginem agora que um órgão com poder sancionatório sobre um profissional, que pode tirar o ganha pão da boca desse profissional, usurpava o direito dos sindicatos e se dedicava à organização sindical, usando o seu poder público como meio de divulgação da sua posição.

Adivinhem agora quem disse que “O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar” [5]. Foi um dirigente sindical ou estas são as Declarações à SIC da Bastonária da ordem dos enfermeiros?

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[1] Conselho Nacional das Ordens Profissionais, “A função das ordens profissionais”, https://www.cnop.pt/sobre/funcoes/
[2] Lei n.o 2/2013 de 10 de janeiro “Estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais”
[3] Vital Moreira, “Para que servem as ordens profissionais?”, https://www.publico.pt/2010/08/31/jornal/para-que-servem-as-ordens-profissionais-20113088
[4] Vital Moreira, “Corporativismo (9): A Ordem fora da lei” https://causa-nossa.blogspot.com/2019/02/corporativismo-9-ordem-fora-da-lei.html
[5] Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, ”O que é importante é o Governo perceber de uma vez por todas que os Enfermeiros querem negociar”, https://www.ordemenfermeiros.pt/noticias/conteudos/o-que-%C3%A9-importante-%C3%A9-o-governo-perceber-de-uma-vez-por-todas-que-os-enfermeiros-querem-negociar/

 

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 11 de fevereiro de 2019)

A importância das cidades inteligentes e dos dados abertos

“Se o poder político é exercido pelo povo, então é necessário assegurar aos cidadãos uma forma de participação direta e ativa. Só que esta participação do povo dominante não se compadece com a colaboração intermitente, antes exige uma participação exigindo intervenção permanente que possibilite, não apenas uma democracia representativa, mas uma autêntica democracia participativa. Ao alargar o papel da participação direta e ativa do cidadão na vida política, a Constituição da República Portuguesa atribui valor normativo à ideia de democratização da democracia, alargando as formas de cidadania ativa para além dos esquemas clássicos da democracia representativa”  Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007)

A forma de governo dos cidadãos escolhidos pelos cidadãos, que respondem aos próprios cidadãos e são legitimados por atos desses cidadãos, continua a ser a menos má de todas as formas de governo. Mesmo quando os resultados não são os melhores, ou quando os representantes eleitos remetem a jogos falaciosos que podem deitar ao descrédito o sistema que lhes deu o poder, a democracia continua a gozar de apoio considerável em Portugal.

Mas esta apreciação global, agora positiva, não nos isenta da obrigação de procurarmos uma forma melhor de sermos representados através de uma maior participação dos cidadãos na democracia.

Joseph Stiglitz, antigo economista chefe do Banco Mundial, tem também defendido a aproximação da governação aos cidadãos pela sua participação nos processos governativos. “Não sou, no entanto, otimista sobre a probabilidade de ocorrer uma reforma de governança, particularmente no que toca a reformas profundas do voto e representação. Aqueles que controlam uma organização não estarão aparentemente disponíveis para entregar o controlo facilmente”.

À escala local, nos municípios, este aumento de participação é tão mais importante quanto a maioria que elege não consiga avaliar os eleitos sem ver “obra feita”. Elegemos os nossos representantes para gerir os municípios, mas avaliamo-los no voto pelas melhorias que estes prometem fazer, sem para isso contrabalançar com os restantes objetivos de gestão.

A maioria que elege tem de conseguir relacionar-se com os resultados obtidos sem que para isso o eleito tenha de ereger ou prometer ereger obra que não era necessária. Mais uma rotunda, mais um lanço de ciclovia ou mais uma estátua não se podem sobrepor à necessidade de nos mantermos nos limites da gestão. As iniciativas têm de ser avaliadas face aos benefícios mensuráveis que os cidadãos vão obter.

As cidades inteligentes (Smart Cities) vêm abrir um novo potencial de abertura da democracia pela possibilidade de aumentar o nível de informação disponível aos cidadãos. Não estou a falar de mudar lâmpadas incandescentes por lâmpadas de baixo consumo e longa duração. Estou a falar da recolha e apresentação de dados que hoje em dia é possível através da orquestração das atividades na cidade nos computadores.

Os cidadãos atuais são pessoas informadas e o acesso à internet permite-lhes aceder a todo o tipo de informação. Queremos que estes cidadãos possam ver nos resultados de governação das cidades as melhorias aos indicadores que as iniciativas se propuseram implementar.

A ideia de cidades inteligentes tem de ser suportada na ideia de mais e melhor democracia para as cidades. É uma obrigação de quem representa cidadãos de lhes disponibilizar a informação que lhes permitirá julgar por si sem necessitarem de opinadores como seus intermediários.

Entrar hoje num edifício municipal deveria permitir ao cidadão tomar conhecimento de como esse edifício é gerido, sem que para isso tenha de solicitar relatórios. Essa informação devia estar disponível em painéis logo à entrada, indicando os recursos consumidos e as melhorias a esses consumos feitas no âmbito da atuação da gestão camarária.

Avançar para iniciativas como o orçamento participativo é bom, mas quem propõe medidas neste âmbito terá de ter mais informação sobre a gestão do seu município para o poder fazer de forma informada e com isso ser comprometido com os resultados das iniciativas que propõe.

A informação tem de ser disponibilizada em dados abertos e livres. Só assim poderão ser entendidos como fiáveis e só assim poderão os cidadãos estar à altura da tarefa complexa que é participar mais nos atos de gestão em democracia.

O afastamento dos cidadãos dos atos eleitorais e a crença de que a filiação partidária é uma marca para a falta de capacidade para pensar tornou-se numa característica da narrativa anti-políticos e anti-sistema que tem de ser combatida.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 26 de fevereiro de 2018)

O futuro da proteção de dados no local de trabalho

A forma como hoje funcionam as empresas, a capacidade de retenção de dados e a velocidade com que esses dados podem ser tratados, aumentou as oportunidades para o tratamento estatístico de dados dentro das empresas. Estas oportunidades aumentaram a informação de suporte às decisões dos seus gestores e com isso a sua capacidade de decisão.

Estas oportunidades estão disponíveis em organizações de qualquer dimensão. Não há hoje pequeno escritório ou loja que não tenha um computador. Qualquer café tem um sistema de vídeo-vigilância, e basta alguns euros por mês para adquirir serviços de e-mail. Todos passíveis de serem minados para obtenção de indicadores.

As organizações podem por isso recorrer cada vez mais a estas oportunidades para otimizarem os seus consumos de serviços e ou organizar as suas atividades. A competição a isso obriga.

Nas grandes organizações, os gestores de sistemas de informação (CIO – Chief Information Officer) gerem hoje mais dados e mais meios de recolha de dados e produção de indicadores do que há 10 anos seria imaginável.

Os parques de impressão, o tráfego das redes de comunicações, os termostatos dos ares condicionados, a ocupação dos elevadores, os acessos aos meios físicos, tudo isto e muito mais tem um sistema, uma aplicação, um registo. Estes registos são quase todos informatizados.

A digitalização do trabalho substituiu grande parte da interação entre pessoas, através de plataformas eletrónicas, por relações que passam por intermediários que permitem todo o tipo de registos.

Nos sistemas de registo em que os dados não são informatizados, estes ficam hoje registados de tal forma que, com um computador e um digitalizador ligado, rapidamente são transformados. Os dados registados em letra de imprensa nas quadrículas dos formulários, mesmo que manuscritos, podem facilmente tornar-se num conjunto de dados tratável num computador.

O tratamento desses dados de forma automatizada e as interpretações que são feitas pelos gestores das normas em vigor são por isso uma preocupação crescente na defesa dos direitos dos cidadãos, em especial, dos trabalhadores.

Os trabalhadores têm uma relação de dependência muito maior da entidade patronal que outro cidadão, o que os torna vitimas fáceis de interpretações das normas de tratamento de dados.

Por essa razão, a UNI Global Union, organização que representa 20 milhões de trabalhadores em 900 sindicatos de 150 países, decidiu criar um documento orientador para a proteção dos direitos sobre os dados dos trabalhadores no local de trabalho.

Este documento procura, através de 10 princípios, endereçar o crescente desequilíbrio provocado pelo tratamento de dados no local de trabalho. O documento apresenta assim o conjunto de reivindicações que os trabalhadores mundiais devem fazer para proteger os seus direitos.

Estes 10 princípios apontam para os direitos de proteção de dados dos trabalhadores, de forma independente e com capacidade de exigência de explicação da forma e dos fins para que os dados são processados, com direito de acesso e influência sobre os dados colecionados sobre os trabalhadores, pelo próprio trabalhador e pelas organizações representativas dos trabalhadores (ORT).

Nada disto deveria ser novo, tendo em conta o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) que, muito em breve, por via da sua aplicação direta no nosso país, passará a permitir a aplicação de multas avultadas a quem não o cumpra.

Mas de pouco vale a um trabalhador a deteção e julgamento a seu favor de um erro de tratamento de dados por uma entidade patronal. Depois de os seus dados serem utilizados para além dos objetivos para os quais foi permitida a recolha, não haverá fanfarra ou registo publicitado do erro cometido pela entidade patronal.

Terão por isso de ser os trabalhadores a fazer valer estes direitos antes dos incidentes. Terão de fazê-lo com a introdução destes princípios nas negociações coletivas e através do controlo constante da aplicação dos direitos que aí adquiram.

Como cidadãos temos de estar vigilantes na defesa dos nossos direitos. Como trabalhadores ainda mais.

(Texto de opinião publicado no Acção Socialista – 16 de fevereiro de 2018)